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O inverno sob o olhar do ayurveda - entrevista com Raquel Luna

Entrevistamos a naturóloga Raquel Luna, especialista em ayurveda e medicina chinesa, que gentilmente nos contou sobre como o inverno influencia nossa vida.

Confira a entrevista inédita!




Qual a importância do ayurveda no estudo das estações?

Na minha visão, o Ayurveda traz uma linda contribuição para pensarmos as estações, suas características e como podemos responder às mudanças de forma a acumular saúde e vitalidade! Existe uma frase que gosto muito em um dos principais textos clássicos do Ayurveda, que é a seguinte:

“Um indivíduo é um epítome do universo, pois todos os fenômenos materiais e espirituais do universo estão presentes no indivíduo, e todos aqueles presentes no indivíduo também estão contidos no universo” (Charaka Samhita, Sarirasthana, capítulo 5, versos 1-2).

Isso quer dizer que somos das mesmas substâncias que o universo (5 elementos), e que assim como este cosmos (que não é caos), temos uma organização intrínseca, uma inteligência. Nós ciclamos, como tudo no universo – dia, noite, estação, nosso ciclo de vida, o ciclo menstrual… Tudo muda sempre e nosso sistema é capaz de se adaptar, principalmente se pudermos ajudá-lo, ou ao menos não atrapalhá-lo!

O ciclo das estações naturalmente traz mudanças e possibilidades de readaptação.

Por exemplo, temos o começo do calor com a primavera, a intensificação desse calor no verão, e então a natureza nos oferece os ventos e resfriamento do outono, e depois o frio do inverno. Na passagem das estações a gente esfria, depois aquece (amenizando naturalmente os problemas que possam ter surgido com o frio) e esfriamos de novo (amenizando as questões trazidas pelo aquecimento), e assim por diante. Podemos “pegar carona” neste fluxo da natureza e adotar um estilo de vida que favoreça essa adaptação com o passar das estações!

Como manutenção da saúde, para quem já está saudável, o Ayurveda propõe uma rotina diária de limpeza e nutrição do nosso sistema. Essa rotina é o primeiro passo. O segundo passo está em adaptações nessa rotina conforme a sazonalidade. Posso dizer então que estudar as estações, suas propriedades, e seus impactos nas particularidades de cada pessoa, são a base da manutenção da saúde!


De que maneira o inverno influencia o nosso corpo e a nossa saúde, dentro da perspectiva do ayurveda?

Essa é uma pergunta bacana que nos ajuda a perceber a riqueza do Ayurveda, que sempre convida a observar a natureza e fazer escolhas. Observar a natureza porque o inverno é diferente a cada ano, a cada dia, e é diferente conforme nossa localização. O inverno no Brasil é diferente do inverno na Índia (descrito nos textos clássicos do Ayurveda), e em São Paulo é diferente do Pará, e ainda neste ano foi diferente do ano passado!

O inverno se caracteriza por ser mais frio, de temperaturas mais baixas do que no verão. Aqui em São Paulo também é, geralmente, seco. A influência de um inverno frio e seco é justamente trazer as propriedades (guna) de “frio” e “secura” ao nosso sistema. O frio no nosso corpo tem um efeito tônico, que promove a vida (coesão), pois “fecha” nossos poros, constringe, e então “acumulamos”. O frio acalma condições quentes, inflamatórias. Mas o frio também prejudica o agni, nosso “fogo digestivo e metabólico” (pois é frio, oposto ao “fogo”, quente), e pode aumentar lentidão, obstrução, acúmulo de coisas que deveriam fluir. Já a secura, que é a ausência da água, pode reduzir fluídos, tecidos. Mas essa secura pode também ajudar a eliminar excessos acumulados pelo frio.

O bonito é perceber que não existe uma resposta única, válida para tudo e todas a todo momento, mas que o impacto no nosso corpo vem da combinação dessas propriedades (guna) – frio e secura – com as nossas características individuais, e nossas escolhas de adaptação.


Quais são os principais doshas que sofrem com esta estação mais fria?

Acho que vale começar falando um pouco sobre o que é dosha!

Na visão do Ayurveda, 5 elementos compõem todo o universo material. Não são entendidos de forma “metafísica”, mas sim como indicadores das propriedades das substâncias (guna). A variação e proporção dos 5 elementos explica as propriedades da substância: quando há predomínio do elemento ar, ela é leve e seca, como os feijões; no predomínio do fogo, é quente e penetrante, como as pimentas; no predomínio do elemento água, é fria, pesada e nutritiva, como os óleos e gorduras.

Os tridosha (vata, pitta e kapha) são forças bioenergéticas que governam a fisiologia humana, sendo a manifestação dos 5 elementos no nosso corpo. Vata é o agrupamento de espaço e ar, pitta de fogo e água, e kapha de água e terra. Então, considerando as propriedades (guna) representadas pelos 5 elementos, vata é leve, seco, móvel, áspero, frio e sutil. Pitta é quente, penetrante, leve, levemente oleoso, fluído e possui odor desagradável. E kapha é oleoso, frio, pesado, letárgico, pegajoso, macio, viscoso e estável.

As pessoas possuem em si todos os 5 elementos, portanto todas nós temos os 3 dosha. Cada dosha é mais responsável por determinadas funções no nosso corpo e ocupa com mais intensidade diferentes órgãos, sistemas e regiões. Vata, em todas nós, é responsável por qualquer tipo de fluxo. Pitta pela digestão, metabolismo, temperatura e coloração. E kapha é responsável pela estrutura e lubrificação do corpo, os tecidos e fluídos. Da mesma forma que as substâncias da natureza têm predomínio de um ou mais elementos, nós também. Essa predominância chama-se prakriti, nossa natureza, constituição. Mas acho que aí já é assunto para um outro momento!

Então voltando ao impacto do inverno nos dosha, essas forças bioenergéticas presentes em todas nós, como “condutoras do nosso veículo”, no Ayurveda temos um princípio básico de que qualidades iguais se somam, aumentam (isso chama-se samanya), e qualidades diferentes se opõem, diminuem (chamado vishesha). Com o frio, aumentamos (e possivelmente desequilibramos) os dosha vata e kapha, pois ambos possuem esta qualidade (guna) do “frio”. Então se o dosha vata em todas nós direciona os fluxos, e se o dosha kapha em todas nós nutre a estrutura e fluídos, a tendência do inverno, de forma geral, pensando no desequilíbrio, é que haja perturbação desses fluxos, acúmulo e obstrução.

Por outro lado, podemos aproveitar a energia do inverno de forma equilibrada, harmonizando a alimentação e o estilo de vida, e vivenciar a calma, a desaceleração, esse momento de interiorização, nutrição e fortalecimento para desfrutarmos a primavera e o verão com energia e vitalidade!

Você sugere alguma prática para estes meses de temperatura mais baixa?

Aquecer! Fazemos isso de várias formas, por exemplo com atividade física. Pode ser simplesmente caminhar. Quando notamos um pouco de suor, uma leve sensação de calor, é sinal de que aquecemos o corpo, estimulamos nosso agni.

Contudo, para uma boa parte de nós que fica muito tempo sentada, ainda mais com o isolamento da pandemia, o inverno pede uma atividade física mais vigorosa! A gente também pode se aquecer com exercícios de respiração como o kapalabhati (inspirar lentamente pelas narinas relaxando o abdômen, e em seguida expirar de uma vez só, expulsando todo o ar pelas narinas, puxando o abdômen para dentro).

O óleo de gergelim prensado a frio, que pode ser medicado com plantas medicinais, é maravilhoso para passarmos no corpo antes do banho quente matinal, aguardando uns 10 minutos de contato com a pele. Podemos usá-lo também em quantidade menor após o banho, com o corpo levemente úmido, quando temos menos tempo disponível.

E, antes de dormir, um escalda-pés é fantástico para aquecer e organizar a distribuição do calor no corpo!



Quais alimentos, e cuidados com a alimentação, devemos priorizar nesta época do ano?

Devemos confiar na natureza, que nos oferece alimentos adequados para cada momento – os alimentos sazonais serão os melhores em qualquer situação! Principalmente se forem sustentáveis, orgânicos, agroecológicos. No inverno temos frutas cítricas, morangos e maçãs, e também algumas abóboras, batata-doce, cará, mandioca, mandioquinha...

Caldos, sopas e mingaus, e para quem consome os caldos dos cárneos, bem cozidos, em pouca quantidade. Essas são boas pedidas no frio!

No inverno sentimos mais fome e vontade de alimentos mais pesados, não é mesmo? Isso acontece porque nosso agni naturalmente aumenta pela constrição causada pelo frio, se concentrando no centro do corpo – que é o trato digestivo. Precisamos de um bom agni para dar conta de digerir a alimentação mais pesada do inverno, que é necessária para manter a temperatura corporal estável no clima frio.

Mas apesar desse efeito fisiológico de aumento do agni no inverno, como falamos antes o clima é frio, a energia é fria, então precisamos ajudar esse alimento mais nutritivo a ser digerido, pois há muita chance de causarmos lentidão e obstrução pela natureza do inverno – é uma condição bem sensível. Fazemos isso evitando frios e gelados, priorizando mornos, tanto do ponto de vista térmico (água fria X morna) quanto do ponto de vista energético (melhor um pouco de suco de laranja, que é quente, do que água de coco, que é fria).

Nos beneficiamos muito ao usar as especiarias, todas elas, tanto as frescas quanto as secas! Todas melhoram nosso agni e são cheias de compostos bioativos: alecrim, orégano, manjericão, hortelã, coentro, salsinha, erva-doce, baunilha, cúrcuma, pimentas, páprica, cominho, cardamomo, canela, cravo, gengibre... Mas claro que podemos lapidar esse uso conforme as particularidades de cada pessoa, principalmente havendo condições de saúde específicas.

Acredito que o principal cuidado com a alimentação, o ponto de partida pra todas nós em qualquer momento, seja observar a sensação de fome, ou seja, se alimentar apenas quando houver fome – nem muita, nem pouca. Claro que se essa fome é muita, ou pouca, ou irregular e imprevisível, há ajustes a serem feitos para “corrigir” o agni. E, então, escolher a quantidade e o tipo de comida que atenda a nossa fome. Fome de quê? Um caldinho picante? Folhas frescas? Com a prática conseguimos prestar atenção nas nossas necessidades para poder atendê-las. Comer apenas quando temos fome, e de acordo com a fome, é especialmente importante no inverno, em que o frio do ambiente aumenta as chances de lentidão e obstrução.

E nesse mesmo sentido, vamos nos beneficiar muito de fazer do almoço nossa principal refeição (quantidade e complexidade), e de não comer à noite, tendo nossa última refeição quando estiver escurecendo. Nossa chance de digerir, absorver, metabolizar e excretar é maior de dia do que de noite (maior ao meio-dia do que às 15h e maior no jantar, por volta das 18h, do que às 21h).


De que forma a terapia ayurvédica pode auxiliar ao longo das estações?

Acredito que auxiliamos as pessoas principalmente quando reconhecemos e estimulamos sua autonomia, e quando atuamos na perspectiva de educação para a saúde. Isso quer dizer oferecer as informações para que elas possam se observar e atender suas necessidades.

Não há duas pessoas iguais, então acredito que a terapeuta constrói junto à pessoa essa lapidação das condutas de rotina diária, de alimentação e de aspectos do seu estilo de vida, adaptados à sazonalidade, sinalizando os pontos que lhe são mais sensíveis, naquele momento.

Mas é claro que também existem conhecimentos específicos das profissionais, e que não precisamos ir estudar fisiopatologia do Ayurveda para o uso pessoal, basta procurar ajuda! Então há práticas terapêuticas que podem beneficiar muito nosso sistema a se adaptar melhor ao longo das estações, como massagens com óleos ou pós herbais, o uso das plantas medicinais, ações de purificação, todo um percurso terapêutico adaptado às necessidades individuais. Isso é especialmente importante se existe alguma condição de saúde específica.


Alguma mensagem que gostaria de deixar para os leitores e leitoras do blog?

Primeiro agradecer você, Rita, pela oportunidade de falar (no caso, escrever!) um pouco sobre Ayurveda, autocuidado, alimentação e estilo de vida, temas que adoro! Me parece que você tem essa qualidade de ter vários interesses e talentos distintos, e conseguir dialogá-los, e comunicar tudo isso de uma forma muito bonita! Taí um aspecto positivo do dosha vata! Hahaha

A principal mensagem que gostaria de deixar é para que todas nós possamos exercitar a leveza para fazer essa pesquisa interna de autoconhecimento e autocuidado. É um caminho pra vida! E a vida real é cheia de percalços.

Precisamos, sim, trazer atenção, observação e organização. Mas precisamos também nos acolher, lembrar que não somos robôs, que haverá dias em que as coisas vão se desorganizar e que “está tudo bem”, mesmo! O importante é colocar em prática essas ideias com amorosidade, que os bons hábitos prevaleçam na maior parte dos dias da semana. É igualmente importante lembrar que faz parte conviver e ir dormir um pouco mais tarde alguns dias, comer algo que estamos com vontade e que talvez vá dar um pouco mais de trabalho pro nosso agni… Termos em mente que há muito mais coisas que não temos controle (o clima, o impacto da idade, a pandemia, filhxs, trabalho, demandas diversas…) do que aquelas que temos controle – nossa alimentação e estilo de vida. Confiar que temos os recursos para nos adaptar e viver com mais saúde e vitalidade, e buscar ajuda quando for necessário!



Raquel Luna é naturóloga, Doutora em Ciências (UNIFESP), e pós-graduada em Fitoterapia e Acupuntura. É terapeuta Ayurveda desde 2006. Atua clinicamente com Saúde Integrativa, e tem como pilares o Ayurveda e a Medicina Chinesa.




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